Nossos sentidos muitas vezes nos enganam, uma pessoa de olhos fechados não poderia imaginar que tamanho barulho agudo e irritante poderia ser causado por uma ave tão pequena e frágil. Um falcão quiriquiri, com tamanho entre 21-31 cm e peso ao redor de 80-165g pode gritar de forma incrivelmente ensurdecedora. Os falcões de coleira também não ficam atrás, talvez um pouco menos agudos do que os quiriquiris, mas tão irritantes quanto. Lembro-me bem da primeira vez que entrei no espaço onde eles estavam, era puro silencio antes de entrar no cômodo, e quanto mais tempo você ficava dentro dele, mais eles gritavam. Definitivamente, é insuportável. Obviamente, eu não fiquei dentro deste cômodo por muito tempo, imaginei que essas aves seriam vencidas pelo cansaço rapidamente, mas outra espécie me provou que nem sempre é assim.
As corujas são caçadoras extremamente silenciosas. Suas penas são especiais, enquanto as outras aves de rapina possuem penas que produzem som ao voarem, as corujas com suas penas serrilhadas e macias não produzem som algum. Isso é essencial para o seu sucesso na caça, visto que elas caçam na escuridão e qualquer som alertaria sua presa.
Podemos então inferir que as corujas são silenciosas, certo? Eu conheci duas corujas que me provaram o contrário. Em várias ocasiões, durante dias inteiros, uma delas era incansável em seus gritos, até que algum alimento lhe era oferecido. A outra não recebia alimento algum para calar seus berros, que findavam quando ela caia no sono ou limpava suas penas, para logo recomeçar.
Enfim, o que fez com que estas aves ficassem tão barulhentas? São todas aves de cativeiro, compradas de criadores legalizados, porém que sofreram processos de imprint alimentar, e ai basta abaixar o peso que a gritaria começa. Como estas aves citadas são mantidas sempre em peso baixo, o chamado peso de voo, elas nunca param de gritar ao ver pessoas próximas. Apesar de que seu grito é mais estridente ao verem seus donos, qualquer ser humano desencadeia sua vocalização, que só termina no momento em que nos retiramos de seu campo de visão.
Obviamente que aves que sofrem o processo de imprint corretamente, cujo peso é abaixado lentamente e com cuidado, cujo treinamento é adequado, não irão gritar como as aves citadas acima. Essas são exemplos de imprint mal feito, mas infelizmente casos assim são muito comuns porque nem todos os proprietários de aves de rapina sabem como treinar adequadamente suas aves.
Aves compradas filhotes sofrem o processo de imprint, e por isso tem tendência a vocalizarem. Aves criadas pelos pais tem menos chance de gritarem assim, porém não é impossível que o façam.
Porque então alguém escolheria aves imprintadas, já que há este risco? Há vários motivos, e depende muito do uso da ave. Corujas não imprintadas, ou seja, criadas pelos pais não se tornam mansas como as criadas desde filhotes por nós, elas são um caso especial, como bem nos ilustra Jemima Parry Jones:
"Eu sinto muito fortemente que é cruel, imprudente e francamente terrível (tanto para a coruja quanto para o instrutor) treinar corujas que não tenham sido criados à mão. Agora tenho a certeza de que há pessoas que fizeram isso e que vão dizer que é o mesmo que treinar um pássaro de rapina diurno que tenha sido criados pelos pais. Eu sinto muito, mas não concordo. Nós tentamos treinar corujas "selvagens" - ou seja, criadas pelos pais aqui, e algumas espécies vão tentar morrer em vez de responder ao treinamento, outras permanecem muito selvagens, e nenhuma delas em nossa experiência gostam do treinamento. Nem acabam sendo agradáveis, mansas, aves amigáveis, ou tornam-se tão relaxadas sobre a vida como as criadas à mão. Para fazê-las trabalhar elas têm que ter o peso reduzido de forma bem dura, e simplesmente não vale a pena." Understanding owls.
Em entrevista cedida ao site Diário de Falcoaria, ela completa:
"Como eu disse no princípio, as corujas pensam, se comportam e agem de forma diferente das aves de rapina diurnas. Sobre o assunto das aves de rapina diurnas eu particularmente não gosto de imprints, eu acho que as águias imprintadas podem ser muito perigosas, e eu não posso ver o motivo de imprintar um falcão, eles são muito fáceis de treinar e muito melhor em termos de boas maneiras se forem criados pelos pais. Eu começo a pensar que, eventualmente, as pessoas não vão se lembrar de como treinar uma ave criada pelos pais !!! Eu tenho um macho de Gavião da Europa imprintado (accipiter nisus), o qual eu voo para minha própria satisfação, porém quase todas as aves que temos aqui são criadas pelos pais, incluindo o nosso açor. No entanto as corujas não são criadas pelos pais se vamos treiná-las.
Como eu disse no meu livro quando tentamos treinar essencialmente as corujas silvestres, têm sido muito mais difícil do que qualquer ave de rapina diurna, e eu sinto que não há nenhum motivo em colocá-las em um tipo muito mais estressante de treinamento se não é necessário. Deixe-me acrescentar aqui que o estresse não é necessariamente uma coisa ruim, todas as coisas vivas lidam com o estresse diariamente, e em particular os animais em estado selvagem, é um acontecimento natural, no entanto, também é importante se certificar de que ele seja reduzido tanto quanto possível.
Não apenas eu tentei treinar corujas criadas pelos pais como também corujas selvagens feridas, mas tenho visto muitas destas sendo manejadas em centros de reabilitação nos EUA e levadas para lugares públicos para a educação ambiental. Eu raramente vi uma destas aves relaxada, sua linguagem corporal é sutil, mas perfeitamente possível de se ler, se você as observa como eu tenho feito nos últimos 60 anos.
Então, por que fazê-lo se você não precisa. Nós tentamos usar a técnica do “cresh rear” com todas as nossas (quando se cria na mão, mas as aves ficam sempre em grupo, junto com outros filhotes da mesma espécie), e até mesmo coloca-las na muda com outras para que elas permaneçam em parte corujas. Desta forma, você pode remover alguns dos problemas da criação de um imprint."
Ronivon Vianna, do criatório Enfalco, o único que reproduz a espécie coruja de igreja no Brasil, em entrevista cedida ao site Diário de Falcoaria fala sobre a questão do imprint das corujas comercializadas por ele e sobre a questão do barulho:
"O processo de imprint de uma coruja é mais lento que de um rapinante diurno, ou seja ela leva mais tempo para se imprintar com o ser humano, desta forma se o intuito é se ter uma coruja imprint (com humanos ) o melhor a se fazer é começar o processo o mais cedo possível e por um período mais longo, desta forma é importante manter o contato direto com humanos o maior tempo possível, de preferencia desde o nascimento , ou que pelo menos nas primeiras semanas de vida ! Na Enfalco as corujas são criadas juntas em grupos de filhotes e com a exposição bastante acentuada ao convívio humano, por isso a colocação de “ Dual imprint : convivem com a própria espécie e o ser humano “ , com ênfase ao total imprint , pois acentuamos bastante o contato com pessoas mais do que haveria de ser com outras aves de rapina criadas por nós. Lembrando que a meu conceito uma ave total imprint teria que ser isolada do convívio da sua espécie e ter convívio somente com humanos até a formação total do seu caráter , somente assim poderia se dizer que tal ave é um total imprint. Optamos por criar corujas desta forma, pois foi observado que quando as mesmas são criadas pelos pais o seu nível de rejeição ao ser humano é enorme, tornando demasiado dificultoso o seu manejo!
Bem, todo mundo queria uma coruja mansinha e silenciosa, certo ?! Mas nem sempre isto é possível ! pois como foi mencionado anteriormente no processo de imprint de uma coruja é necessário o seu convívio com humanos desde o mais cedo possível, desta forma também reforça a chance de termos uma das mais indesejadas formas de imprint que é o “ imprint de comida “, ou seja a coruja entende que você é o provedor de alimento e vai procurar sempre pedir por comida quando sentir que você está por perto. Contudo, como também foi mencionado anteriormente isto varia de individuo para individuo, ou seja uns podem ser mais barulhentos que outros!
Agora a pergunta : Existem formas de solucionar ou amenizar o problema da vocalização ?! Sim, mas como tudo que se trata de comportamento depende de muitas variáveis ! Algumas atitudes de manejo podem ajudar a diminuir a vocalização , tais como : Procurar sempre oferecer a quantidade de comida correta no momento de fazer a alimentação, evitando tambem a falta de comida por um tempo maior que o necessário . Tentar conviver com o filhote por um período além daquele que for feita a alimentação, ou seja evitar que o filhote te veja somente quando for alimenta-lo, mostrando para ele que a sua convivência faz parte da sua vida como um todo e não somente como provedor de alimento. Deixe que ela se alimente sozinha (quando possível e com monitoramento ) em um pratinho, mas lembrando que dar comida no bico fortalece os vínculos, no entanto também trás consigo muitas vezes a dependência de alimentos .
Outra forma bastante eficiente que é inclusive usada por nós, quando queremos uma coruja mansa mas que não vocalize tanto consiste no seguinte manejo: Após a completa formação física do filhote, ou seja por volta dos 80 dias de idade, o mesmo é deixado por um período de uns 2 meses em um recinto aonde não há convivência com humanos, nem mesmo visual , após este período ele é retirado do recinto , equipado e trazido novamente a convivência com pessoas. No inicio ele se apresenta um pouco arredio mas em poucas semanas volta a ficar manso e com um nível de vocalização muito baixo !”
Outras aves de rapina como os falcões podem ou não ser imprintados, mas os objetivos são outros que a docilidade: pode ser para evitar que se afastem demais do falcoeiro, para que assim tenham um elo maior com ele e por tanto se diminua as chances de perda da ave.
Hidelgardo Gomes, um respeitado falcoeiro que é muito experiente com a espécie Falcão de coleira (falco femoralis), fala sobre esta tendência de imprintar falcões em sua entrevista para o site Diário de Falcoaria:
“Na minha humilde opinião, acredito que aves imprint são muito melhores para projetos de reprodução, não gosto nada desse tipo cria, prefiro aves criadas pelos pais. Sim, há diferença em tudo, exceto nas características biológicas da espécie é claro. Tem pessoas que falam que gostam de falcões imprint, por causa do vínculo com o falcoeiro, assim reduzindo o risco de perder a ave, o que não me faz mudar de opinião, pois já treinei falcões selvagens adultos e ficaram muito vinculados a minha pessoa, porém com uma grande diferença: não tinham vícios indesejáveis como os vícios que a maioria dos falcões imprintados adquirem. A maioria dos falcões imprint são muito dependentes dos falcoeiros o que dificulta muito a evolução para falcoaria, salvo as exceções.”
No caso dos gaviões asa de telha não há vantagens no seu imprint, pelo contrário, isso poderá causar uma gritaria sem fim. Como é uma espécie que mesmo criada pelos pais desenvolve um laço forte e duradouro com seu dono, além de ter um temperamento tranquilo e até mesmo dócil quando comparado a outras espécies, a maioria é comprada sem imprint.
Então isso significa que serão aves silenciosas? Não exatamente, já que esta espécie pode desenvolver um imprint tardio e se tornar gritadora quando estiver com peso baixo. Leo Fukui, do criatório Fukui, especializado nas espécies parabuteo e sparverius, nos fala sobre a questão do imprint nos gaviões asa de telha e sobre como eles são criados no seu criatório em entrevista concedida ao site Diário de Falcoaria:
"O Parabuteo unicinctus é conhecido por sua “facilidade” de amansamento e criação de vínculo com o falcoeiro e não vejo necessidade de humanizar ao extremo. Os ovos são chocados desde o dia 1 em incubadora. Após o nascimento os filhotes ficam sob meus cuidados por aproximadamente 5 dias quando são entregues para serem criados pelos adultos e com estes ficam até completarem o desenvolvimento, em geral até as 16 semanas de idade, quando são disponibilizados para compra. É minha crença também que o trato dado pelos adultos aos filhotes supera o que eu possa oferecer, em termos de paciência e tempo de dedicação na sua criação. Para esta espécie em particular, não vejo uma boa relação custo-benefício na humanização. Os exemplares podem ser adquiridos a partir do momento em que recebem a anilha de identificação, mas , a idade sugerida é quando completa 16 ou 20 semanas de vida.. Acredita-se que nesta fase já estão com desenvolvimento físico e principalmente mental, mais completo. Mesmo assim, nesta espécie, há indivíduos que podem ter o que se chama de 'imprint tardio'."
Jennifer e Tom Coulson, em sua obra The Harris’s Hawk Revolution falam sobre este tema tão polêmico, e ensinam como evitar a vocalização excessiva:
“Muitos gaviões asa de telha jovens criados em cativeiro gritam pedindo comida (food-beg), mesmo que você não tenha feito absolutamente nada de errado. Alguns gritam antes do treino começar. Felizmente, a maioria grita somente em seu primeiro ano. Pode ser frustrante quando um jovem gavião concentre-se em gritar e não a caçar. Tenha paciência, pois logo que ele tenha caçado alguns coelhos, ele irá se silenciar.
Muitas coisas que os falcoeiros fazem poderão incentivar os gritos. Abaixar o peso rápido demais ou abaixar muito é a causa número um de excesso de vocalização. Alimentar totalmente o gavião na luva e dar pequenas porções de carne nela (chamado em inglês de tidbit) com demasiada frequência poderá também encorajar a vocalização excessiva.
Habitualmente deixar um jovem gavião na caixa de transporte ou encapuzado o dia todo quando ele está com peso baixo é outra causa comum. O gavião sabe que o falcoeiro é o fornecedor de alimentos, e quando o seu peso está baixo, fica desesperado para comer. Ele não pode sair da caixa para obter alimentos, por isso grita para seu pai (o falcoeiro), para obter alimentação e atenção. Reduzir o peso do gavião sem treiná-lo pode também incentivar os gritos porque o gavião fica aborrecido, se sente isolado e anseia por comida e atenção. Expor um jovem gavião a outra ave gritadora é outra causa comum (cap. 7).
Se você absolutamente tem que evitar gritos, você pode considerar obter uma ave de dois anos de idade, que já tenha sido criada por alguém. A outra opção seria capturar um passageiro e esperar que ele não grite (alguns o fazem).
Evitar gritos nem sempre é possível com um jovem gavião criado em cativeiro, mas minimizar gritos certamente o é. Um fator que pode ajudar a reduzir a gritaria é obter um gavião com cerca de 20 semanas de idade. Outro fator é a mansidão de base genética da linhagem, com gaviões mais mansos sendo mais propensos a gritar. O grau de associação de alimentos com seres humanos durante a criação também pode influenciá-lo a gritar. Alguns criadores criam os filhotes de gavião na mão até que completem 12-14 dias, antes de coloca-los junto aos seus pais. Nós não recomendamos criar filhotes na mão para além de 5-7 dias, porque ao fazer isso poderá ocorrer tanto o imprint quanto a vocalização excessiva. (cap.16).
O falcoeiro pode ajudar a minimizar ou possivelmente até mesmo evitar os gritos eliminando quase toda a associação com os alimentos. A refeição do dia pode aparecer magicamente através de uma rampa de alimentação. O falcoeiro pode restringir as picadinhas ( tidbitting) na luva ao mínimo, chamando o gavião ao lure ou ao poleiro em T ao invés de na luva. O falcoeiro deve também reduzir o peso de forma gradual e tão pouco quanto seja necessário para obter uma boa resposta no campo. Por fim, leve o gavião à caça assim que possível, e o apresente à presa. Se ele gritar muito no campo de forma que não esteja procurando presas, guarde a ave ou deixe que ele pegue um rato ou jovem coelho para focar a sua mente.
A maioria dos gaviões asa de telha que nós treinamos gritou uma parte do seu primeiro ano de vida. Isso é devido ao fato de que nós intencionalmente escolhemos os filhotes mais mansos das nossas linhagens selecionadas pela docilidade. (cap.15). Se ter um gavião gritador durante o seu primeiro ano é o preço para se ter um gavião sedento por sangue com um temperamento dócil, nós iremos alegremente aceitar um pouco de gritos. “
Pelas palavras dos Coulsons podemos concluir que não há como evitar totalmente a vocalização, porém com o manejo e treinamento adequados você consegue evitar que sua ave se torne uma gritadora.
Lembrando que treinar adequadamente uma ave de rapina é complexo, por isso o recomendável é que antes de adquirir uma você estude sobre a espécie e sobre o seu treinamento, faça cursos de manejo, busque apoio em associações ou grupos de falcoaria, e se possível tenha contato com uma ave da mesma espécie escolhida. Essa preparação prévia evitará erros que podem parecer pequenos, mas que serão determinantes para problemas como a gritaria ou a agressividade extrema.
Caso você já tenha uma ave gritadora, não desista dela! Há formas de minimizar esta vocalização, por isso peça ajuda a um falcoeiro experiente e faça o que for necessário para que a sua convivência seja melhor. Seus vizinhos, e seus ouvidos, agradecem!
Bons voos a todos!
Kátia Boroni
Bibliografia:
Informações sobre Aves de Rapina
Entrevista Ronivon viana – Criatório Enfalco: http://www.diariodefalcoaria.com/single-post/2015/12/28/Entrevista-Ronivon-Viana
Entrevista Jemima Parry Jones:
Entrevista Leo Fukui - Criatório Fukui:
Entrevista Hildegardo Gomes:
Coulson, Jennifer and Tom. The Harris's Hawk Revolution. Parabuteo Publishing, L.L.C. http://www.harrishawkrevolution.com/
Jones, Jemima Parry. Understanding owls. https://www.amazon.com.br/Understanding-Owls-Jemima-Parry-Jones-ebook/dp/B00AG4JLS2
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