A Falcoaria, por ser um esporte milenar, traz consigo muito conhecimento adquirido pela experiência em campo. Porém nem sempre a experiência sozinha é suficiente, muitos preconceitos existem e persistem ao longo das décadas por conta de opiniões baseadas apenas nas experiências pessoais vividas por falcoeiros, ou pelas histórias escutadas. A ciência pode contribuir muito ao esporte, ao dar dados que permitem uma avaliação mais segura sobre o que funciona ou não no treinamento e na caça com aves de rapina. O texto traduzido de Matthew Mullenix e Brian A. Millsap não trata apenas da questão do falcão quiriquiri ser uma ave adequada aos iniciantes, mas principalmente demonstra como podemos evitar preconceitos se aliamos os estudos teóricos à experiência, tornando a arte da falcoaria mais rica e completa.
Boa leitura!
Kátia Boroni
Os aprendizes de falcoaria deveriam ter a permissão para voarem falcões quiriquiris (falco sparverius)?
(O que os dados dizem)
Matthew Mullenix & Brian A. Millsap
Traduzido por: Kátia Boroni
Introdução
Como falcoeiros, nós costumamos ter opiniões sobre o esporte e nossos colegas com base em eventos e situações encontradas no cotidiano. Essas experiências, ou aquelas vividas indiretamente através das histórias de outras pessoas, moldam nossas atitudes e crenças sobre como a falcoaria deve ser praticada. Este processo é uma parte importante da tradição da falcoaria e com razão dita muito a forma como o esporte é praticado hoje. No entanto, se estas opiniões forem baseadas em uma pequena experiência ou pela falta de lógica, estas opiniões podem se tornar uma corda ao redor de nossos pescoços.
Que escolha temos além de basear nossas posições na experiência pessoal ou anedótica? Uma alternativa óbvia é o uso de dados, ou seja, as informações recolhidas, registradas e analisadas de forma objetiva e sistemática. Como falcoeiros que têm trabalhado em uma agência de vida selvagem do estado que regula a falcoaria, nós temos testemunhado casos em que acreditamos que o esporte poderia ter se beneficiado por uma visão baseada em dados de um problema ao invés de pela perspectiva proporcionada pela experiência individual. Um exemplo recente é a questão de saber se falcoeiros aprendizes devem voar falcões quiriquiris (Falco sparverius). Aqui usamos esta controvérsia para ilustrar como os dados podem ajudar a avaliar uma questão real de falcoaria de uma forma mais objetiva.
Histórico
Os falcões conhecidos como kestrels, especialmente o peneireiro-vulgar (F. tinnunculus), têm sido há muito tempo associados com o esporte da falcoaria, servindo como o pássaro tradicional para praticantes iniciantes (Ford, 1992). Durante o renascimento do esporte nos Estados Unidos, o pequeno Kestrel americano (quiriquiri, falco sparverius) foi considerado um análogo ideal de seu parente Europeu e era geralmente recomendado para uso pelo aprendiz (Beebe e Webster 1964). Quando os regulamentos federais sobre a falcoaria foram promulgados em 1976, os falcões quiriquiris foram listados como uma das três espécies (juntamente com o Buteo jamaicensis e o Buteo lineatus) permitidas aos falcoeiros aprendizes licenciados.
Desde aquela época, a preocupação veio à tona entre alguns falcoeiros de que o tamanho diminuto e a relativamente delicada natureza do quiriquiri o tornaria inadequado para uso do principiante. É uma crença comum entre os falcoeiros que quanto menor a espécie voada, menor se torna a margem de erro, particularmente no que se diz respeito ao controle de peso do rapinante e ao design do seu equipamento. Falcoeiros aprendizes são considerados por alguns insuficientemente experientes para manter um rapinante tão pequeno bem de saúde, particularmente quando o maior e provavelmente mais robusto búteo de cauda vermelha (Buteo jamaicensis) está disponível.
Este sentimento foi compartilhado por um número de falcoeiros experientes praticantes na Flórida. Em última análise, com base nos pareceres deste grupo, o assunto foi trazido à atenção do Florida Game & Fresh Water Fish Commission sob a forma de uma proposta para excluir falcões quiriquiris como aves legais para falcoeiros aprendizes. A FG & FWFC adotou esta proposta na sua reunião de Março de 1992, e a regra entrou em vigor em 14 de abril de 1992.
Nosso propósito aqui não é para castigar os falcoeiros que incentivam a mudança na lei. Ao contrário, é admirável que um grupo de falcoeiros se importe tanto sobre as aves que voamos a ponto de procurarem impor restrições sobre eles mesmos para proteger este recurso. Nosso interesse, no entanto, é a base para a opinião de que falcoeiros aprendizes não possuem habilidade suficiente para fornecer cuidados adequados para as pequenas aves de rapina, e também descobrir se esse uso tem um impacto significativo sobre o recurso. Com estes objetivos em mente, partimos para determinar os fatos.
Dados e métodos
Se os falcões quiriquiris sofrem substancialmente uma maior mortalidade sob o manejo da falcoaria do que os búteos de cauda vermelha, isso pode ser avaliado empiricamente utilizando dados fornecidos por meio dos relatórios de falcoaria obrigatórios. Nós revisamos relatórios anuais publicados sobre a captura e a disposição de aves de rapina, realizada em três estados ativos de falcoaria e com bons sistemas de manutenção de dados (Idaho, Novo México, e Califórnia) entre os anos de 1971 e 1985. Estes são os únicos estados onde falcoeiros aprendizes podem voar ambas as espécies e para as quais nós poderíamos encontrar registros de captura / disposição publicados. Nós incorporamos nesta análise as taxas de mortalidade de indivíduos selvagens de ambas as espécies com base nos dados obtidos na literatura publicada.
Resultados
Nossa análise incluiu informações sobre a disposição de 1017 buteos de cauda vermelha e falcões quiriquiris capturados para a falcoaria (Tabela 1). Combinados 445 (43,8%) indivíduos foram perdidos ou soltos na natureza, 50 (4,9%) morreram, e 522 (51,3%) foram supostamente mantidos em cativeiro.
A taxa de mortalidade bruta de falcões quiriquiris de falcoaria (7,7%) foi ligeiramente superior à dos buteos de cauda vermelha (4,3%). Esta diferença foi significativa já que a probabilidade de se observar uma diferença numa amostra deste tamanho, tiradas de duas populações que possuem taxas de mortalidade iguais, seria inferior a 7%.
Conclui-se daí que a diferença nas taxas de mortalidade de falcões quiriquiris e búteos de cauda vermelha utilizados na falcoaria era real e não um artefato da análise.
Dito isto, ainda há que se pensar se uma diferença de 3,4% na sobrevida entre as duas espécies em cativeiro é biologicamente significativa. Há uma tendência geral entre aves de rapina das espécies menores de terem taxas anuais de mortalidade mais elevadas do que as espécies maiores (Newton 1979). De fato, a análise de dados de toda a América do Norte produziram estimativas de mortalidade no primeiro ano de falcões quiriquiris selvagens de 67% (Henny 1972) e para os buteos de cauda vermelha no primeiro ano de 64% (Henny e Wright, 1972). Esses autores utilizaram um método de tabela de vida para calcular essas estimativas da taxa de mortalidade, e esta metodologia pode produzir resultados tendenciosos e enganosos (Anderson et al., 1981). Por esta razão, estamos cautelosos sobre colocar muita ênfase sobre estes dados, mas eles apoiam a tendência geral relatada por Newton (1979). Tomados em conjunto, acreditamos que a informação disponível suporta a conclusão de que a diferença relativa de mortalidade entre os falcões quiriquiris do primeiro ano e dos buteos de cauda vermelha é semelhante em ambas as populações selvagens e em cativeiro.
O que isso significa?
Conclui-se que não há nenhuma evidência de mortalidade significativamente maior para os falcões quiriquiris do que para os buteos de cauda vermelha usados na falcoaria, considerando diferenças inerentes que parecem existir nas taxas de sobrevivência destas espécies na natureza. Além disso, as taxas de mortalidade destas aves usadas na falcoaria parecem ser substancialmente menores do que no estado selvagem para ambas as espécies.
Nós prontamente admitimos que esses dados possam ser falhos, especialmente considerando-se as amostras de pequenas dimensões, mas as falhas não necessariamente invalidam nossas conclusões. Em primeiro lugar, os relatórios sobre a mortalidade de aves usadas na falcoaria podem incluir resultados inadequadamente relatados e dados incompletos. No entanto, não vemos qualquer razão para que o efeito de erros de relato não seriam os mesmos para ambas as espécies, caso em que o viés seria inconsequente. Em segundo lugar, não temos nenhuma maneira de saber quantos dos falcões quiriquiris e dos buteos de cauda vermelha incluídos na análise foram manejados por falcoeiros aprendizes ao invés de falcoeiros em outras categorias. Nós suspeitamos que os aprendizes mantiveram muitas aves de ambas as espécies, mas, novamente, qualquer tendência nesse sentido provavelmente se aplicaria igualmente a ambas as espécies. Finalmente, como já reconhecemos, os dados sobre as taxas de mortalidade na natureza são de precisão questionável. No entanto, como vimos anteriormente, mesmo se a mortalidade no primeiro ano em estado selvagem for igual entre estas duas espécies, nós questionamos se a diferença observada na mortalidade sob o manejo da falcoaria tenha qualquer consequência real.
Indo para esta análise, esperávamos encontrar suporte para a posição de que os falcões quiriquiris fossem aves de fato mais difíceis de manejar na falcoaria do que os buteos de cauda vermelha, e que esta dificuldade seria refletida em maiores taxas de mortalidade em cativeiro. Embora nós tenhamos encontrado alguma evidência para este fato, não acreditamos que a diferença seja significativa em termos da prática da falcoaria ou da gestão de recursos. Uma lição aprendida com este exercício é que é arriscado tomar decisões regulamentares baseadas apenas em opiniões pessoais. Isto é particularmente importante quando você considera que as agências de gestão da vida selvagem têm pouco motivo para considerar as opiniões dos falcoeiros ao invés das opiniões dos observadores de pássaros, dos defensores dos direitos dos animais, ou dos caçadores com arma de fogo. O grande equalizador no debate científico é uma boa informação, e não podemos deixar de acreditar que a falcoaria iria se beneficiar de uma maior aplicação do método científico na sua prática e regulação. Para este fim, sugerimos que a comunidade da falcoaria apoie o recolhimento de dados apropriados que possam ser usados para avaliar objetivamente as questões básicas como o impacto da captura de aves de sob suas populações selvagens, e as taxas de sobrevivência das aves libertadas após o seu uso na falcoaria. Nosso esporte pode muito bem ser a atividade ambientalmente responsável e ecologicamente correta que nós afirmamos que ele seja, mas sem dados para apoiar esta afirmação, a nossa é apenas uma opinião entre muitas.
Agradecimentos
Nós gostaríamos de agradecer ao Coronel Kent Carnie, curador do Arquivo da Falcoaria Americana, por sua ajuda para localizar os dados publicados utilizados neste artigo. Jennifer Coulson, Tom Coulson, e Tim Breen fizeram comentários úteis sobre uma versão anterior deste artigo.
Tabela 1
Disposição de falcões americanos e buteos de cauda vermelha capturados para a falcoaria no Novo México (1971 - 1980), Califórnia (1978, 1980), e Idaho (1980 - 1985).
Literatura citada
Anderson, D. R., A. P. Wywialowski, and K. P. Burnham. 1981. Tests of the assumptions underlying life table
methods for estimating parameters from cohort data. Ecology 62:1121-1124
Beebe, F. L., and H. M. Webster. 1964. North American Falconry and Hunting Hawks. 1st edition. Wingsong Press,
Denver, Colorado, USA.
Ford, E. 1992. Falconry Art and Practice. The Bath Press, London, England.
Henny, C. J. 1972. An analysis of the population dynamics of selected avian species. U.S. Department of the Interior,
Fish and Wildlife Service, Wildlife Research Report 1.
Henny, C. J., and H. M. Wight. 1972. Population ecology and environmental pollution: red-tailed and Cooper's
hawks. Pages 229-250 in Population ecology of migratory birds, a symposium. U.S. Department of the Interior,
Fish and Wildlife Service, Wildlife Research Report 2.
Newton, I. 1979. Population ecology of raptors. Buteo Books, Vermillion, SD, USA.
Referência
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